Um lugar familiar; muitas vezes é isso que nos conforta. Poder estar em um lugar que conhecemos bem e do qual sabemos as rotinas traz uma sensação agradável às nossas mentes. Por isso muitas pessoas repetem o jargão “não há lugar como o nosso lar”. Voltar para casa depois de uma viagem pode trazer certa tristeza, mas certamente traz também uma sensação de volta ao lugar de pertencimento que é reconfortante. Mas essa história é justamente sobre a sensação oposta: a de estar em um lugar incômodo, desconhecido e desconfortável. Essa é a história da cidade das sombras.
Mendes estava pela primeira vez fora do seu deslocamento normal de trabalho, que às vezes até contava com viagens para outros estados, mas para os mesmos de sempre, aqueles no qual se concentram quase que a totalidade das atividades comerciais do país. Dessa vez ele se permitiu tirar férias e não queria associar esses dias a nada que tivesse a ver com trabalho e por isso a escolha de um outro lugar.
Isso implicou também em algo que ele apreciou de início: ter que descobrir a cidade para onde fora desde o completo zero. Cada saída da casa que alugara para tomar um café ou dar uma caminhada era uma nova expedição e ele se animara com as novidades. Mas esse fator, que dava ânimo a Mendes em sua viagem, acabou por se revelar traiçoeiro.
Mendes andava à noite pelo centro, sem rumo, só observando o vai-e-vem das pessoas. O centro era um lugar aconchegante e ele foi entrando por suas ruas, onde ficava encantado com algumas casas e edifícios que pareciam bem antigos, alguns poderiam ser até patrimônio histórico, porque remetiam a uma outra época, com certeza. Em uma determinada ruela ele achou casarões impressionantes, com estilo arquitetônico muito destoante do contemporâneo. Empolgado, foi seguindo pela rua, aproveitando que ainda havia certa movimentação de pessoas.
Então dobrou uma esquina e olhou para o fim da rua e viu um homem com uma cartola parado. Ele não parecia intimidador ou coisa do tipo, só ficou com uma sensação de que a figura estava muito deslocada daquele contexto. Mas lembrou dos casarões antigos e pensou que, na verdade, o traje do sujeito até que se encaixaria com a época daquelas construções. E foi na direção dele sem pensar muito. Mas ao se aproximar, o homem virou-se e partiu, indo em direção às sombras, de onde nada se via senão uma névoa que começava esparsa e se intensificava ao longe.
Mendes não tinha reparado naquela névoa pelo resto do centro. Que aquele lugar parecia diferente de todo o resto ele já tinha percebido, mas o quão diferente seria? Não importava… já tinha ficado tarde e ele precisava voltar. Deu meia-volta e foi pelo caminho por onde veio, com um pequeno problema: o caminho não levava para o mesmo lugar de antes. Na verdade, ele não conseguia se encontrar nem achar nada que pudesse reconhecer o caminho por onde tinha vindo. Andava e no final terminava sempre dando naquele pedaço de beco de onde a névoa fluía.
Depois de muito rodar e sempre retornar à névoa, o rapaz entendeu que precisaria passar por ali, independente do que quer que estivesse acontecendo. Mas ao tomar essa decisão não havia se preparado para o que estava prestes a testemunhar: diante dele, ao passar pelo beco, se encontrava dentro de um outro lugar que parecia pertencer a outro tempo e espaço. Mendes havia achado a cidade das Sombras.
Desnorteado e perdido, começou a vagar pelas ruas do lugar, sem saber para onde ia e com medo do que poderia encontrar por ali. Mas não demorou muito para Mendes reencontrar o homem da cartola andando por ali. A figura parecia atraí-lo de uma forma irresistível, uma vez que agora ele era a única coisa do lado de lá que Mendes conseguia ver. O rapaz seguiu o homem, que ele não soube bem se tinha ciência que estava sendo acompanhado. De certa forma, parecia que sim. Na verdade, comportava-se como se guiasse alguém a algum lugar.
Sem mais opções do que fazer, Mendes o seguiu mantendo certa distância, até que a figura parou. Ele parou também e ficaram os dois em silêncio por alguns segundos. — Você não é daqui, não é mesmo? — disse o homem da cartola, ao qual Mendes respondeu negativamente. Um barulho surgia ao longe e ele tentou enxergar de onde vinha. Aos poucos, começaram a aparecer várias pessoas, se ajuntando como uma grande procissão. Prestou atenção em cada um deles e notou que eles não poderiam ser seres vivos. Isso o assustou, o que estava acontecendo afinal? Uma procissão de espíritos? De demônios? De mortos-vivos? O que era aquilo?
A multidão passava quando ele percebeu um casal ali perto de onde ele estava, com os arregalados de pavor! Que coisa nefasta! Mendes resolveu se juntar a eles. Pelo menos eram humanos e pareciam tão afetados por tudo aquilo quanto ele. Talvez pudessem se ajudar a sair dali. O nome do homem era Carlos, o da mulher, Suzana. Os três seguiram o caminho oposto ao que a procissão tomara, procurando algum lugar mais iluminado e menos sombrio.
“O que será que eram aquelas coisas caminhando?” eles perguntaram. Mas nada fazia sentido e ninguém soube como explicar. Seguiram em frente até encontrar uma casa com a porta da frente aberta. Entraram, receosos, e observaram o local. Parecia um imóvel antigo, com mobília de madeira sólida e sem iluminação, parecia abandonado. O local estava coberto de poeira, mas eles acharam que era melhor passar a noite ali, já que poderia ficar vagando a noite toda pelas ruas e não sabiam que outras “coisas” daquelas iriam aparecer. Pelo menos a casa não possuía outras entradas e se conseguissem bloquear a entrada, não correriam risco de ninguém invadindo e dormiriam com segurança. Pela manhã, seria mais seguro deixar aquele lugar.
A casa possuía dois quartos e o casal ficou com um e Mendes ficou o outro. Combinaram de fechar suas portas por dentro do cômodo, mas abririam se alguém fizesse o toque combinado de três batidas cadenciadas. Com isso, se acomodaram e foram dormir. Contudo, não demorou para que coisas estranhas começassem a acontecer. O rapaz acordou num sobressalto e pôs-se a procurar por sua esposa, mas não a encontrou. Foi até a janela, de onde não conseguia ver nada lá fora além das sombras das construções da cidade.
Perturbado com o sumiço da mulher, ele foi até a porta do quarto de Mendes, porém ao se aproximar viu uma forma negra emergir e atravessar a madeira e saltou num susto. Voltou gritando pela esposa pelos cômodos da casa só para receber os ecos de sua voz refletida nos cômodos. Se ela ainda estivesse na casa, não podia responder.
Mendes ouviu os gritos e correu para ver o que tinha acontecido. Os três, então, se encontraram na sala da casa, sem saber explicar o que estava acontecendo. Carlos contou da forma que vira sair da porta e eles se apressaram a sair dali. Mil questões vinham às mentes deles, mas não possuíam resposta alguma, nenhuma pista de onde estariam ou o que era aquele lugar. Voltando às ruas da cidade das sombras, procuraram por uma lugar menos aberto onde pudessem ser facilmente vistos, mas que não fosse tão escondido e traiçoeiro como aquela casa.
Qual não foi a surpresa do trio quando, ao virar a esquina de uma das ruas daquele lugar medonho, eles encontram novamente o homem da cartola. Frente a frente com o sujeito, eles estacaram. Talvez houvesse ali uma chance de obter alguma resposta. “Quem é você?”, perguntou Mendes. O homem sorriu, inclinou levemente a cabeça que antes estava abaixada, permitindo um breve vislumbre de seus olhos e disse que seu nome não era importante. Acrescentou que nada ali era importante, na verdade.
Ele continuou e disse que acompanhassem seus passos, se fosse possível. E que tudo ali era imprevisível e assustador, como tudo que não se conhece por completo pode ser.
Os três seguiram o homem por ruas esquisitas da cidade das sombras, onde brilhava uma luz que parecia artificial, mas ouviram uma voz chorosa ecoar pela cidade e olharam ao redor procurando a fonte do choro. Nisso, tiraram o olhar do homem e o perderam de vista. O choro persistiu e eles continuaram seguindo o choro, cada vez mais perto. Então, por entre as ruas, viram uma luz diferente e o choro mais nítido e foram naquela direção. Carlos e Suzana correram na frente e abraçaram um menininha que estava chorando, muito assustada no meio da rua. Mendes se aproximou e eles explicaram que era a filha deles. Ela se perdeu enquanto estavam passeando pelas ruas do centro e se separou de seus pais, que procuram por ela, tinham acabado entrando naquele lugar assustador.
Os quatro conseguiram se localizar e retornar ao centro de modo seguro e voltar para seus aposentos. Mendes percebeu então que ele não tinha trocado número com o casal, nem tirado nenhuma foto daquele lugar e, portanto, não tinha nenhuma prova do que tinha acontecido. O que era aquela cidade, quem era o homem da cartola, que procissão macabra era aquela, o que era aquele vulto? Ele nunca saberia. A não ser que…
Na manhã seguinte, Mendes acordou cansado, mas motivado. O dia correria sem grandes feitos, à tarde seria monótona. Mas à noite prometia. Hoje, ele iria ao centro. Especificamente, à Cidade das Sombras.
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