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Oscar Nestarez e a multiforme literatura de horror

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Para inaugurar o espaço para entrevistas aqui no nosso blog, o Causo Brabo entrevistou o escritor e pesquisador de literatura de horror Oscar Nestarez! Oscar é organizador da antologia Tênebra – narrativas brasileiras de horror [1839-1899] em parceria com Júlio França e autor de livros como Claroscuro e Bile Negra. Oscar também é colunista da Revista Galileu onde escreve sobre também sobre o tema. Sem mais delongas, vamos à entrevista! Acompanhe até o final e fique com as indicações de Oscar!


Seu nome está muito associado ao gênero do terror, tanto na área de pesquisa quanto na produção literária. Como e quando se deu esse interesse?

Bom, esse meu interesse vem de muito longe — vem da infância—, estímulo dos pais, um pouco da escola também. Mas principalmente dos meus pais; da minha mãe, basicamente, que sempre me colocou em contato com cinema, com arte no geral, mas em especial com cinema. Um pouco menos com literatura, mas ela adorava filme de terror. Então ela me punha pra ver esses filmes, mesmo numa idade não apropriada [risos].

Quando eu tinha uma idade ainda não indicada pra ver filme de terror, vi alguns filmes. Não via tudo, via umas partes, ficava com medo, mas era aquele medo misturado ao fascínio e a curiosidade, né? A vontade de ver. Aquela curiosidade mórbida que a gente sempre teve. E isso, depois, desaguou na literatura, quando comecei a ler mais, pelos 10, 11 anos, principalmente livros da Coleção Vagalume, de mistério, narrativas de detetives, de grandes escritores e escritoras.

E isso já foi criando em mim prazer da leitura, e dessa leitura mais pro campo do mistério. Depois, quando cheguei ao horror, aí por meio de Lovecraft, Edgar Allan Poe, e um pouco depois Clive Barker, foi uma paixão que nunca mais se extinguiu. Então vem do cinema, e depois, enfim, se firma na literatura pra valer a partir dos meus 12, 13 anos. Foi quando comecei a ler pra valer, aí passei a ler tudo que me caia na mão, principalmente de horror.

O primeiro contato que tive com algum projeto seu foi com “Tênebra”, o portal. Conta um pouquinho sobre como ele surgiu, o que ele é e qual é o objetivo.

Bom, Tênebra é um projeto idealizado principalmente pelo professor Júlio França da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o mais importante pesquisador do gótico, da literatura de medo aqui no Brasil, das chamadas poéticas negativas, que abrangem horror, gótico, grotesco, narrativas de crime e tudo mais. O Júlio sempre foi uma referência para quem pesquisa.

Comecei a fazer pesquisa acadêmica formalmente em 2014, com o meu mestrado, depois o doutorado a partir de 2018, mas o Júlio já estava aí antes disso, mostrando os caminhos para a gente. E eu me orgulho de tê-lo como grande amigo, além de parceiro em Tênebra. Que é uma biblioteca digital montada com material que o Júlio reuniu nas pesquisas dele, com alunos, orientandos e outros pesquisadores. Ele juntou muito material ficcional, muitos contos, dentro dessas poéticas negativas, pensando mais no século XIX, que é onde estava a pesquisa dele e onde estava, de certa forma, a minha também. No começo, eram mais de 300 contos ali que ele tinha no acervo digital, e ele queria disponibilizar isso de uma forma mais organizada, sistematizada.

Tênebra: Projeto de Júlio França com Oscar Nestarez que é um biblioteca digital de poéticas negativas nacionais

Então ele me chamou para montar a biblioteca digital Tênebra, que foi inaugurada em 2021, e em 2022, quando o site fez um ano, teve o lançamento do livro pela Fósforo. A editora nos procurou para juntar alguns contos que a gente tinha ali na nossa biblioteca digital e montar uma antologia. Tênebra, o livro, nasceu assim, com essa vontade de disponibilizar um acervo riquíssimo de pesquisa de contos, todos em domínio público. Mas tem algumas narrativas mais longas, noveletas, novelas e até romance, que estavam à margem, escondidos. E no site, tudo está disponíel gratuitamente. Toda terça-feira a gente faz o upload de uma narrativa. Já devemos chegar a 160 publicadas.

O horror talvez seja um dos gêneros mais multiformes e adaptáveis. É incrível perceber que uma autora como Mariana Enríquez possa escrever algo tão pertinente a sua realidade e contexto enquanto Poe faça o mesmo e gerem histórias totalmente diferentes. De onde vem esse leque de possibilidades, na sua opinião?

Sobre essa pergunta, é importante comentar que os dois exemplos aqui são muito afastados entre eles, tanto no tempo quanto no espaço — a Mariana Enríquez hoje e o Poe lá na primeira metade do século 19. Ambos estavam imersos em contextos culturais e estéticos, principalmente, muito diferentes. Isso já torna as histórias deles naturalmente diferentes. Mas concordo muito com isso de o horror ser um gênero multiforme e adaptável. Não à toa é possível entender o horror não só como um gênero autônomo, mas também como um modo: um modo de narrar que entra em outros gêneros, na ficção científica, mesmo na distopia, às vezes no drama, nós temos elementos de horror ali. Quero dizer, são procedimentos narrativos que vêm do horror, que servem a outras categorias.

Mariana Enríquez: expoente da literatura de terror, citada diversas vezes por Oscar Nestarez

Acho que o fato de ser multiforme e adaptável se deve ao horror basicamente expressar um medo, um trauma, enfim, algo muito profundo de um indivíduo ou de uma sociedade, de uma coletividade. E são muito diversos esses traumas; cada um de nós tem os seus próprios traumas e medos e pavores, fobias. E as sociedades também; o que apavora um determinado grupo social não é exatamente o que apavora outro. Mas o horror serve a simbolizar, transformar em alegoria alguma monstruosidade; serve a sublimar esses medos diferentes num território comum a todo mundo. Então, acho que esse é um recurso que se aplica às mais diversas pretensões literárias, aos mais diversos projetos literários.

E não se esgota, porque isso vem desde o século XVIII, com força e autonomia, e só ganha mais ímpeto, conforme a gente vai percebendo. O horror vai se tornando mais e mais um gênero popular. Então acho que se deve a isso, a essa transformação de medos e traumas muito diferentes em códigos reconhecíveis por toda a humanidade, ao menos a parte da humanidade ocidental.

Como pesquisador do gênero, qual foi a pesquisa na qual você mais se surpreendeu com o que descobriu?

Eu responderia que foi durante o doutorado, que concluí em 2022. Eu tinha a pretensão de pesquisar o horror contemporâneo aqui no Brasil, o horror a partir do século XXI. Mas à medida que fui garimpando, investigando, abrindo o terreno nesse sentido, eu percebi que teria que olhar muito para trás.

Porque eu tinha uma intuição de que haveria uma possível tradição do horror aqui no Brasil. Tinha, na verdade, uma percepção mais forte de que não era um fenômeno contemporâneo o estabelecimento do horror literário aqui. Mas eu não tinha uma ideia do tamanho, da dimensão do que tinha precedido o que a gente vê hoje, em termos de produção, de temáticas diferentes, de subgêneros.

Então, tive que redimensionar a minha pesquisa de acordo com isso, começando lá do século XIX. Começando com “Noite na Taverna” mesmo, pegando pelo gótico, pelo ultrarromantismo, que na tese eu trato como uma espécie de proto-horror, um imaginário do horror que se estabelece antes da afirmação do gênero no Brasil, que acontece a partir do século XX, mas com uma força impressionante. Então, à medida que fui fazendo essa pesquisa, me surpreendi com aquilo que está fora dos radares, né? Enfim, boa parte disso a gente procura compartilhar, disponibilizar em Tênebra.

Recentemente, você publicou um texto em sua newsletter falando sobre por que não considera Stephen King o rei do horror, embora reconheça que ele é um ótimo “prosador”, mas que dá muitas voltas e dispersa o espanto. Isso indica que o horror que te agrada não deve se dispersar, mas deve ser fugaz e direto. Gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.

Pois é, essa é uma questão polêmica. Claro que tem um tanto de subjetividade, um tanto do meu próprio gosto pessoal a respeito da criação, da concepção e da execução do horror; mas eu não diria que eu prefiro que ele seja mais direto, não é tanto uma questão. Acho que sim, muitas vezes o King rarefaz o efeito do horror com a técnica descrita dele, que é aquela técnica do “small talk” mesmo. Chamar de conversa fiada é um pouco mais desabonador do que o termo em inglês, “small talk” seria uma conversa que, aparentemente, não tem muita importância.

Depois, muitas vezes, você percebe que ele está construindo o personagem, a trama está andando; mas, às vezes, isso se dispersa. E eu, particularmente, prefiro o horror quando ele não padece dessa rarefação. Quando a tonalidade do discurso é mais grave, por assim dizer. É mais sisuda, sabe? Claro que eu adoro quando você mete ali uma piadinha, alguma coisa mais descontraída, vai para um lado um pouco mais descontraído. Acho que a própria Mariana Enriquez faz isso. Alguns contos dela têm um humor sutil, né?

Stephen King rarefaz o horror de suas narrativas, segundo Oscar Nestarez

Mas acho que às vezes o King exagera um pouco, ele força um pouquinho a mão nessa questão. E aí fico com os autores e autoras que mantêm a coisa mais nos trilhos mais graves, mais austeros, aquela narração que vai te preparando para algo grandioso e terrível que está chegando. Enfim. Não necessariamente direto, o próprio Lovecraft era um cara muito prolixo, muito palavroso, só que ele conseguia elaborar, criar esse clima de tensão, vai despertando uma expectativa dentro da gente em relação ao que vai acontecer de terrível, que é muito marcante, essa composição de atmosfera dele.

As melhores obras que tenho lido de horror recentemente vão por aí. O próprio “Cupim”, um romance da espanhola Layla Martínez que saiu pela Alfaguara, é isso. Tem humor muito, muito tênue, mas a coisa ali é agressiva, é pesada, é dura, a dicção das narradoras — são duas narradoras —, é forte, é contundente. E aí eu prefiro a vibração do horror nessa sintonia ao que tenho lido mais recentemente do King.

Que autores você já leu que são poucos conhecidos no Brasil e que você recomendaria a leitura?

Sobre autores que podem ser mais lidos, eu sempre vou falar do inglês Robert Aickman, que saiu por aqui por uma edição em parceria da Ex Machina e da Clepsidra, “Repique macabro e outras histórias estranhas”, são contos. O Aickman era um contista absurdo, extraordinário. A própria Enriquez é muito fã dele. Fizemos uma live com ela a respeito do livro, eu traduzi dois contos dessa antologia, o “Repique macabro” e “Niemandswasser” (água de ninguém em alemão).

Repique Macabro e outras histórias estranhas, de Robert Aickman pelo Sebo Clepsidra

E é difícil explicar por quê. A minha justificativa para que se leia o Aickman é que se leia porque só tendo contato com o texto dele a gente é tocado pela mágica sinistra que ele promove ali. É um mago mesmo, o Neil Gaiman fala disso. O Aickman, a gente não sabe direito que magia que ele fez, mas a gente sabe que ele fez alguma coisa.

A gente vai lendo os contos, porque ele vai construindo ali um universo que nós reconhecemos, mas muito aos poucos vai colocando nesse universo elementos estranhos e principalmente inquietantes, assustadores. Muito aos poucos, com muita sutileza, muita elegância. E quando percebemos, esse universo que a gente reconhecia já está bastante diferente, bastante deformado,
distorcido.

Alguns contos vão mais para fantasia, outros permanecem ali num fantástico quase do século XIX mesmo, mas alguns são obras-primas do horror, como o próprio “Repique macabro” — eu acho um contaço de… a gente pode dizer que de zumbis, mas seria forçar um pouco a barra. Enfim, Aickman é sempre a minha recomendação.

Está aí uma baita edição acessível para nós; acessível no sentido de que está disponível aqui no Brasil. Quem ama horror não pode deixar de ler o Aickman. Quem ama o fascínio causado pela grande imaginação, a imaginação sinistra e poderosa, impressa no papel, não pode deixar de ler o Aickman.

O terror já teve suas obsessões por monstros, demônios, serial killers, alienígenas, de certa forma, sempre refletindo as inquietações de seu tempo. Considerando o cenário atual, qual você acha que será a cara do terror nos próximos anos?

Olha, essa é uma boa pergunta… Eu acho que hoje as boas histórias de horror — eu mencionei a Layla Martínez, falo também da Mariana Enriquez, penso também em alguns contos da Mônica Ojeda — têm um subtexto social forte. Têm uma questão de acerto de contas, com estruturas hegemônicas, principalmente de autoras mulheres, num revide contra o sistema comandado pelo patriarcado, por assim dizer. Então acho que as formas do horror servem muito para esse acerto de contas mesmo.

Tanto tempo massacrando mulheres e outros grupos. Questões raciais também, enfim… o horror de autoria de pessoas negras vira um espaço de confronto e de revide, por meio das estratégias do gênero, muitas vezes, como eu te falei, de alegorias e figurações, por trás ali tem questões sociais muito intensas. Então, acho que o horror de cunho social vai ganhando cada vez mais força.

E a questão climática, né? Acho que a ameaça climática acaba sendo um tópico fortíssimo pro horror. Sei que a gente vai pro campo das distopias, mas a distopia é um futuro. A gente imagina um futuro desolado, devastado. E pelo que a gente percebe, o presente já está caminhando por aí, o presente já está caminhando por aí. Então, eu arriscaria dizer que são duas vertentes principais aí que — claro, sempre vão aparecer monstros e entidades sobrenaturais —, de certa forma, vão estar vinculadas a essas duas possibilidades. Chutaria isso.

Fale um pouco sobre seus projetos atuais e futuros.

Bom, meus projetos sempre envolvem ficção e não ficção. Meu grande projeto atual é um romance que terminei de escrever no ano passado e agora eu estou tentando publicá-lo. Estou nesse processo, vamos ver se acontece isso ao longo desse ano, espero que sim. Um romance de horror, né? Horror também sobrenatural. Seria o projeto mais ambicioso em que já trabalhei. Fora isso, muita coisa acontecendo no campo da não-ficção, publicações…

Estive no Rio de Janeiro, no dia 21 de junho, para o lançamento da nova edição revisada e ampliada do “As artes do Mal“, mais uma parceria minha com o Júlio França. São textos seminais sobre poéticas negativas, horror, terror, crime grotesco, escritos por grandes filósofos, ficcionistas, cientistas, pesquisadores. Tem texto do Darwin, por exemplo, um excerto de A origem das espécies, em que ele fala do ambiente hostil entre os animais. Também há textos de Mary Shelley, Poe, Virginia Woolf… É um conjunto de textos muito interessante que foi publicado pela Acaso Cultural.

As artes do mal, mais uma parceria entre Oscar Nestarez e Júlio França, ganha nova edição revisada e ampliada

E o ebook vai ficar disponibilizado gratuitamente, porque a ideia é que seja referência pra pesquisas. Também tem uma tradução minha pra sair, do “Fome de Viver“. O romance que deu origem ao filme do Tony Scott, o clássico goth, do começo dos anos 80, com a Catherine Deneuve, David Bowie e a Susan Sarandon. O autor é o Whitley Strieber e vai sair pela Clepsidra, imagino que se não nesse mês, no próximo.

Tem mais uma tradução importante para sair. Eu não posso dizer qual, mas está para sair. Tem um grande projeto de contos, a totalidade dos contos do Edgar Allan Poe com minha organização, mas não posso falar muito também sobre. Enfim, bastante coisa para acontecer! Daqui a pouco me sento para escrever uma outra história, também, porque não consigo ficar sem escrever ficção por muito tempo.

Para terminar, quais são suas obras preferidas do terror?

Sobre as minhas obras preferidas, é uma resposta que varia no tempo. Bom, tem as obras fixas que estão sempre lá, e aí eu cito contos do Edgar Allan Poe, não vou especificar nenhum, mas o conjunto dos contos do Poe, que pra mim são fundamentais e fundadores do horror como a gente conhece na literatura, em termos de arquitetura do horror, de estruturação, composição e tudo mais. Então, o conjunto de contos dele sempre vai estar entre os meus preferidos.

Nas montanhas da loucura, de H.P. Lovecraft

Do Lovecraft, sou louco pelo “Nas montanhas da loucura“. Acho uma obra-prima mesmo, de composição do horror, de imaginação do horror, de estímulo à nossa própria imaginação. Uma experiência de que nunca vou me esquecer, quando li pela primeira vez; depois as releituras preservaram a força.

Cito “Frankenstein” também, romance da Mary Shelley; tem algumas passagens de horror ali que, embora não seja uma obra fechada no gênero, são absolutamente inacreditáveis, de tão boas, de tão poderosas que ficam com a gente. E aí, enfim, vou manter essas três como fixas; e as obras contemporâneas são as que mudam.

Nossa parte de noite“, da Mariana Enriquez, foi o melhor livro que eu li recentemente de horror. Um dos melhores no geral. Acho um romance absurdo de bom, e de horror sobrenatural pesado, com cenas assustadoras e tudo mais. Colocaria “Cupim” também, da Layla Martínez, uma dimensão menor, mas gostei demais do romance. Então foi uma leitura que mexeu muito comigo e me marcou.

Ah, e os contos do Robert Aickman, né? Selecionaria os contos do “Repique macabro e outras histórias estranhas“, acho que é um conjunto maravilhoso de contos dele. E a mágica que o Aickman elabora ali nesses contos é absolutamente singular. São experiências de leitura que eu não consigo comparar a mais nada, sabe? Então, pronto, esses seis: três fixos e os três provisórios!

Onde achar Oscar Nestarez

Instagram: https://www.instagram.com/oscarnestarez/
Coluna da Revista Galileu: https://revistagalileu.globo.com/colunistas/oscar-nestarez/
Site do projeto Tênebra: https://www.tenebra.org