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Quem eu sou

  • Categoria do post:Causos / Contos
  • Tempo de leitura:6 minutos de leitura
Trilha recomendada para ouvir enquanto lê

O homem misterioso

Alzira vinha caminhando pela estrada empoeirada, o sol já em declínio sobre os morros, quando o avistou. No meio de um campo raso, havia um círculo de pedras, e, ao centro, um homem sentado, imóvel, observando algo invisível ao redor. Parecia preso, enraizado naquele ponto, e o modo como seu rosto permanecia sem expressão — vítreo, como quem observa o vazio — causou-lhe um desconforto imediato. A estrada estava vazia, não havia casas por perto, e a última vila ficava a quilômetros. Alzira, que conhecia os perigos de ser mulher sozinha numa trilha, pensou em passar direto, mas algo no homem parecia… puxá-la.

Aproximou-se com cuidado, sem cruzar o limite das pedras, e chamou por ele. Nenhuma resposta. Só o silêncio. Arriscou mais uma pergunta, tentando saber seu nome ou destino, mas, mais uma vez, ele permaneceu inerte. Até que, para sua surpresa, uma voz baixa, quase rouca, que parecia vir do centro da própria Terra, se fez ouvir. Era a voz dele.

— Perdi algo. Você o viu?

Alzira hesitou, confusa. — O que perdeu?

— Não sei. Um pedaço de mim. Algo que devia lembrar. — Seus olhos pareciam buscar o vazio entre as pedras. — Mas não lembro mais o que é.

Ela olhou ao redor. Nada além de terra e grama seca. Sentiu um arrepio, mas disfarçou. — Posso ajudar, talvez?

O acordo

Ele ergueu os olhos, e Alzira sentiu um calafrio ao perceber que aqueles olhos pareciam… gastos. Como se a passagem do tempo tivesse retirado deles algo essencial.

— Sim — ele respondeu, com uma suavidade amarga. — Mas para ajudar, você precisa esquecer algo de si. Uma troca, por assim dizer.

Ela recuou um passo, incomodada, mas a curiosidade era mais forte. “E o que aconteceria, exatamente?”, quis perguntar, mas não sabia por onde começar. Antes que pudesse, no entanto, ele continuou, como se lesse seus pensamentos.

— Uma memória em troca de outra. Você me dá algo seu, e eu dou algo meu. Se o que esqueço for o que procuro, posso ir embora. Se não for… volto para o círculo.

Era um jogo de extremos, de uma fatalidade inescapável que Alzira sentia como uma corrente oculta sob a superfície das palavras dele. E, ainda assim, algo em sua mente — talvez um desejo velho e silencioso de abandonar certas lembranças — a fez concordar. Sentiu-se tola, mas, naquele instante, concordou.

É suficiente

Então, ele estendeu-lhe a mão. Ao tocá-lo, uma sensação quente e fria se espalhou por ela, e uma vertigem a tomou. Sentiu sua mente deslizar, como se parte dela estivesse sendo drenada. E então, fragmentos começaram a apagar: uma infância na vila, os primeiros passos ao lado da mãe, um cheiro de lavanda que vinha do cabelo dela. Tudo isso se esvaía, enquanto uma lembrança nova lhe surgia, uma que não era dela — era dele.

Ela agora via o homem. Era jovem, um rosto forte, mas ainda vulnerável, sorrindo para uma moça que lhe estendia uma flor. Ele a tomava pelas mãos e se declarava, e a imagem era tão vívida, tão real, que Alzira quase esqueceu que não era ela. Mas então, o homem se virou. Seus olhos, antes gastos, estavam vivos, brilhando com uma luz que, para ele, era nova.

— É suficiente. Lembro quem eu sou.

Ele se levantou e, sem mais, virou as costas, seguindo a estrada, deixando-a ali, perdida.

Alzira tentou chamá-lo, mas quando sua voz saiu, ela não reconheceu o som. Sentiu o peso de uma ausência que crescia dentro dela. Tudo o que era seu se mesclava com a lembrança dele, numa confusão de fragmentos e faces. Não sabia mais o que era dela e o que havia dado. Voltou à estrada, mas cada passo a afastava mais de si mesma.

Hoje, quem passa pelo círculo de pedras vê uma mulher ali, estática, com os olhos gastos, como quem espera por uma memória que nunca vem.